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AYURVEDA E OS DESAFIOS DO ATENDIMENTO ONLINE – parte 1

Este texto foi originalmente publicado na edição de junho de 2021 na Revista Medicina Integrativa. Leia o original.

CENÁRIO ATUAL

De acordo com o Instituto IPSOS, 53% dos brasileiros declararam que seu bem-estar mental piorou um pouco ou muito no último ano. Outros estudos também trazem dados preocupantes, como a pesquisa “ConVid Comportamentos”, realizada em parceria pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde das pessoas entrevistadas, 40,4% disseram ter sentimentos de tristeza ou depressão, e 52,6% afirmaram experimentar sentimentos de nervosismo ou ansiedade, muitas vezes ou sempre.

Como terapeuta em Ayurveda, percebi que a procura por alternativas de como lidar com o estresse aumentaram significativamente após o início da pandemia. Em meio à devastação causada pela Covid-19 e a necessidade de isolamento social, é perceptível o crescimento do consumo de bebida alcoólica, de cigarro, de comida processada, de menos prática de exercícios, menos horas de sono, mais tempo de televisão e de internet.

COVID E ANSIEDADE

De acordo com essa medicina ancestral, a ansiedade é provocada pelo excesso de movimento na mente e no sistema nervoso, desequilíbrio alimentado por constantes estímulos negativos. Porém, apesar de classificarmos este desconforto como mental, o desequilíbrio também tem origem física.

Por isso, o passo inicial para o tratamento sempre será o ajuste da qualidade do fogo digestivo, ou seja, a capacidade de digerirmos de forma adequada um alimento, uma emoção ou pensamento. E para isso, um bom diagnóstico é necessário. 

Leia também “Medo e ansiedade em tempos de CORONA – COVID19“.

ATENDIMENTO

Com a pandemia, muitos paradigmas tiveram que ser quebrados, vide o sucesso das aulas de yoga à distância, onde muitas das escolas sobreviveram ao gap provocado pelo confinamento mantendo as classes on-line.

Isso não foi diferente com os atendimentos de Ayurveda. Claro que os procedimentos corporais tiveram que ser interrompidos e, na medida do possível, o próprio paciente foi incentivado a praticá-lo.

OS ELEMENTOS DE UM BOM ATENDIMENTO

No entanto, como toda boa medicina oriental, um tripé é necessário para que o resultado de qualquer atendimento seja positivo: um bom vaidya (médico), um paciente qualificado e um ambiente adequado.

O médico ideal.

No Ayurveda, é dada muita importância às boas qualidades de um médico, sendo assim espera-se que um vaidya seja um especialista versado, possuindo conhecimento teórico, experiência, habilidade prática e limpeza.

De acordo com Sushruta, um vaidya deve possuir determinação, coragem, memória, boa fala e paz, isto é, o profissional deve ter um comportamento condizente que o diferencie do charlatão. Neste mesmo caminho, Charaka expõe que o médico deve ser:

  • saudável, modesto, paciente, verdadeiro, habilidoso e destemido.
  • ter uma mão firme e uma mente disciplinada.
  • não gabar-se de seu conhecimento.

Pela perspectiva do Ayurveda, o papel do médico vai além do mero tratamento de doenças, isto é, ele deve ajudar o indivíduo a alcançar o objetivo espiritual final de auto-emancipação, que é mais difícil sem uma mente e um corpo saudáveis. Somado a isso, ele deve:

  • educar as pessoas sobre saúde e doença.
  • ser capaz de se comunicar com o público leigo e também com os acadêmicos.

Portanto, um médico ayurvédico deve se envolver em estudos de tópicos filosóficos, ter um discurso profissional e se tornar proficiente na arte de falar em público.

O  paciente.

De acordo com o Ayurveda, ao paciente são necessárias quatro qualidades:

  1. Smruti – boa capacidade de memória para aprender as instruções sobre medicamentos e sua ingestão;
  2. Nirdeshakaritva – capacidade de seguir as instruções corretamente;
  3. Abhirutva – destemor e coragem;
  4. Jnapakatvam cha roganaam – boa memória sobre a lista de queixas ou doenças que sofre, e uma expressão desinibida.

O ambiente adequado.

O ambiente de atendimento deve ser agradável e limpo, adequado para a prática e aplicação dos tratamentos. 

A equipe de atendimento deve ser composta por cuidadores aptos, inteligentes, fortes fisicamente e mentalmente. Com seus respectivos corações entregues ao serviço e a proteção dos enfermos.

O médico deve ter uma sorte de medicamentos disponíveis para os tratamentos, os quais devem ter qualidades como Rasa, Upasara, Guna, Veerya, Vipaka e Karma. Ademais, precisam ter:

  • sido cultivados em uma terra fértil, sem contaminação e preservada de forma metódica.
  • coletados em datas auspiciosas, contendo cheiro, cor e sabor adequados.
  • também necessitam ter a capacidade de destruir os doshas mórbidos quando administrados em forma de medicina.

DIAGNÓSTICO

Explicada a composição para que um bom atendimento em Ayurveda aconteça, podemos entrar no tópico de como fazer um bom diagnóstico ou pareeksha.

Desde do começo da pandemia, mais e mais os atendimentos médicos tiveram que ser adaptados, visto que o próprio Ministério da Saúde permitiu a ampliação do sistema de telemedicina por meio da Portaria n.º 467/2020.

Porém, o Ayurveda é um Darshana, isto é, observação. E Darshana é o primeiro passo para um bom diagnóstico. Na medicina moderna, esta etapa é conhecida como inspeção, a diferença é que um bom vaidya o fará com dedicação e compaixão.

De acordo com Susruta, antes de prescrever qualquer procedimento terapêutico, o médico deve examinar o tempo de vida do paciente e se ele têm vida útil residual, e então seu Vyadhi (doença), Ritu (estação), Agni (poder digestivo), Vaya (idade), Deha (corpo construir), Bala (força), Sattva (mente), Satmya (fatores conducentes), Prakriti (constituição), Bhesaja (droga) e Desa (habitat). 

DARSHANA: observação profunda e ampla.

No presencial, esta etapa já inicia enquanto o paciente caminha em direção à sala de consulta, onde é possível fazer uma avaliação da marcha, do físico e da aparência. Com a mudança para o online, a checagem prévia sobre o uso de maquiagem, procedimentos estéticos ou filtros utilizados nas ferramentas de conexão entraram na lista inaugural. Neste caso, conferir as fotos do corpo, rosto, unhas e língua são ótimas formas para auxiliar o pareeksha.

Dr. Vasant Lad, um dos primeiros vaidyas a vir para o ocidente, explica que a face é o espelho da mente e os olhos, a janela da alma. Espelho da mente porque Mano Vaha Srotas, que tem sua raiz no plexo cardíaco e permeia todo corpo, desemboca nos órgãos dos sentidos e pontos mármicos.

Isto quer dizer, que um bom médico de ayurveda, compreende o funcionamento da mente e entende qual parte do corpo está adoecida apenas por observar o rosto do paciente.

Além disso, ele ensina que a face cobre todas as conexões com o cérebro, pois cada órgão dos sentidos está conectado a uma determinada área. Por exemplo, os olhos estão ligados à área occipital, onde a interpretação da percepção visual acontece. 

Por isso o exame detalhado do rosto e da cabeça, pode ser uma ferramenta importante no diagnóstico online. Essa parte do corpo é tão importante que há análises específicas para as orelhas, íris dos olhos (no ocidente conhecido como iridologia), cabeça e língua. 

SPARSHANA: toque, percussão e auscultação.

O segundo passo é a avaliação de outros fatores, como: temperatura do corpo, margens de inchaços na pele e alargamentos de órgãos. Os métodos clínicos podem ser de palpação, percussão e auscultação.

No presencial é comum, a leitura e observação do pulso, da língua, dos dentes, do cabelo e dos olhos a fim de confirmar o estágio e duração da doença, caso ela exista.

No online, utilizar as ferramentas da medicina moderna como os exames laboratoriais, podem ajudar a confirmar o prognóstico.

PRASHANA: questionamento por meio de perguntas.

E por fim, não menos importante, as perguntas investigativas acerca da idade, local de moradia, relações familiares, entendimento da força do corpo e da mente do paciente. Além disso, devem ser levantados a capacidade digestiva, a estação do ano, seus hábitos gerais, a dieta, as medicações ingeridas e histórico de doenças.

Uma vez, quando o Dr. J.R. Raju foi questionado se durante a checagem de pulso, utilizava habilidades médicas ou a intuição, ele respondeu: “Intuição é simplesmente a extensão da lógica”, isto é, o que que parece ser intuitivo é meramente a análise conjunta de uma série de sinais coerentes, sintomas e impressões.

Por isso, para se fazer um bom diagnóstico, o médico ou o terapeuta em Ayurveda devem ser excelentes detetives.

ESTUDO CLÍNICO DA DOENÇA

O segundo passo é o estudo clínico da doença, o qual começa com Nidãna Pañchakam. Nidaña significa etiologia e pancha, cinco. Então são cinco os parâmetros clínicos com os quais podemos entender a doença:

NIDÃNAM: etiologia ou causa.

  • De causa interna ou externa.
  • De ação imediata ou de longo prazo. 
  • De causa forte e específica ou fraca e múltipla com efeito acumulado.
  • De causa secundária ou direta.
  • Ato que provoca de forma direta a doença ou ato que desbalanceia o dosha criando a doença.
  • Fator que estimula o dosha, mas não cria a doença ou fator que estimula o dosha, provocando a doença.
  • Apropriadas à estação/ local ou inapropriadas a estação/ local.
  • Doença primária causando uma segunda doença ou complicações secundárias que provocam outras doenças.
  • Ama envolvido no desequilíbrio do dosha ou quando não há presença Ama no desequilíbrio.
  • Injúrias físicas que afetam o corpo e provocam determinadas doenças.
  • Desejos não atendidos, fazendo o que não se quer. São ações que provocam desordens mentais e afetam os canais da mente.
  • Causas sutis que afetam Jivatman ou genética.
  • Causas que foram manifestadas devido a uma ação na vida passada ou na presente.
  • Não ouvir a inteligência do corpo ou fazer mau uso dos órgãos dos sentidos.
  • Relacionado ao tempo, tais como: fatores que causam envelhecimento, sazonais ou pertinentes aos estágios da digestão.
  • Causas ambientais ou pertinentes às estações do ano.
  • Dieta inapropriada.
  • Parasitas como bactérias, parasitas, vírus e fungos.
  • Riscos ocupacionais.
  • Traumas que possam afetar o corpo e mente.
  • Distúrbios iatrogênicos, isto é, alteração patológica pela má prática médica.

PURVARUPA: sintomas e sinais prodrômicos

É fase que precede o aparecimento de sintomas de uma dada doença, na qual a maioria dos sinais clínicos são inespecíficos. Normalmente as pessoas não procuram um médico nesta fase, preferindo esperar a manifestação do próximo estágio, ignorando os sinais que o corpo apresenta.

Porém, se a manifestação da doença for tratada nesta etapa, ela será facilmente manejada.

RUPA: sintomas e sinais cardinais (sinais clássicos do processo inflamatório).

Nesta fase, os sinais do adoecimento se tornam mais claros, pois os doshas em excesso saem do trato digestivo, viajam pelo corpo até chegarem a um local enfraquecido para ali penetrarem e permanecerem.

UPASHAYA: diretrizes terapêuticas.

Quando o indivíduo tem sintomas vagos, possivelmente envolvendo dois ou três doshas, o Ayurveda recomenda usar ervas medicinais, dieta e estilo de vida como terapia exploratória. Por esta razão, você pode aplicar, nesta fase investigativa, tratamentos antagônicos (como na alopatia) ou similares (como na homeopatia)

SAMPRAPTI: patogenia, a origem e o desenvolvimento da doença.

CONHECIMENTO, INTEGRIDADE RESPONSABILIDADE NO DIAGNÓSTICO

Em seu livro “Textbook of Ayurveda – vol 2”, Dr. Vasant Lad esclarece que “os nossos sentidos são as nossas principais ferramentas para o bom diagnóstico porque através do aperfeiçoamento constante, essa habilidade será atingida. Porém, o maior inimigo é a nossa própria mente, que se utiliza dos mesmos sentidos, das emoções e do medo para nos convencer a tratar apenas dos sintomas da doença, de fazer dinheiro e nada mais.” 

De acordo com Dr. Lad, como praticantes de Ayurveda devemos sempre nos perguntar:

  • Quem dirige a carruagem?
  • Estou na prática para o meu próprio ganho, distraído pelo estímulo sensorial?
  • Ou me mantenho dedicado para o crescimento pessoal e para o bem estar dos pacientes?
  • A direção que tomo rédea é para o além do medo e da ignorância? 

Neste último, a experiência do praticante é chamada Brahama Bhavati Sarathith, onde Brahma é o condutor da carruagem. Por isso, quando o seu coração detém as rédeas do diagnóstico, do tratamento e da interação entre médico e paciente, você estará comunicando de alma para alma. E seu coração, e não a sua mente, será o seu guia.

REFERÊNCIAS

  • Ayurvedic Hospital Management – Chikitsa Chatushpada por Dr. Raghuram Y.S. MD (Ay)
  • Ayurvedic Treatment Strategies To Break The Pathogenesis por Dr. Raghuram Y.S. MD (Ay) & Dr Manasa, B.A.M.S
  • Textbook of Ayurveda – vol.2 por Dr. Vasant Lad
  • 8 Divine Qualities of a Physician – Ashta Jnana Devata
  • Khuddaka Chatushpada Adhyaya – Charak Samhita Sutrasthana 9

Luciana Kimi

Sou terapeuta em ayurveda e facilitadora de processos de revitalização do Ser. A dança e a arte me inspiram. A natureza me conecta. Há 10 anos tive o meu primeiro contato com a ciência milenar indiana, e aprendi que a felicidade está diretamente ligada à manutenção da saúde.